Quando um tema é tirado das entranhas, de suas próprias e de suas coautoras, como bem faz questão de remarcar Lilian Alves-Machado, não se poderia esperar outra coisa senão profundidade e intensidade, atravessadas por uma escrita crítica e poética, tal como a vida, que se faz e refaz – autopoieses. Neste trabalho, não sem ousadia e muita sensibilidade, nos é apresentada a dura realidade de mulheres negras que, quando crianças, viram seus sonhares sonhos e fantasias capturados por muitas violências, mas, sobretudo, pela violência inominável de serem violadas em seu mais profundo íntimo. Relatos de dor, escondidos e guardados nos cantinhos dos segredos, que muitas vezes não se quer lembrar, nos são apresentados, revisitando momentos de absoluto desamparo, cujas marcas, tal como tatuagens, são indeléveis e que, aqui e ali, teimam em sangrar. No entanto, se a fala cura, é justamente porque ela permite compreender que as experiências vividas, em que pese a carga que elas comportam, nos preparam para enfrentamentos outros porque nos mostram que somos capazes de superá-las ou, ao menos, nos reposicionarmos diante delas. É nesse enredo de violências e traumas que os relatos contados vão se tecendo e re-tecendo, nos oferecendo uma cartografia que vale a pena ser lida, não só como testemunho, ou melhor, como um testemunho para que estas realidades nunca mais se repitam.
Ana Lúcia Francisco, Doutora em Psicologia Clínica, psicóloga, psicoterapeuta e professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.