Não faz muito tempo que se tornaram mais audíveis as vozes das pessoas intersexo e mais visíveis as discussões sobre intersexualidade do ponto de vista de suas implicações sociopolíticas e éticas. Em geral, contestam-se o rigoroso regime de silêncio em torno do tema e da crença, que tal regime busca manter intocada, de que gêneros e sexos são naturalmente opostos e incomensuráveis. Oculta-se assim das pessoas intersexo a realização de cirurgias sobre seus corpos, muitas vezes ainda bebês. Oculta-se a natureza dos “remédios” ou “vitaminas”, na verdade hormônios, cuja administração, a partir da adolescência, visa suprimir o aparecimento de características corporais consideradas incompatíveis ao gênero cirurgicamente produzido. Impõe-se à intersexualidade que seja vivida como segredo, seja nas relações pessoais, seja no mundo público. É justamente na contramão desse processo de negação e silenciamento que se posiciona o cuidadoso trabalho empírico e reflexivo de Anacely Guimarães Costa. Em diálogo com o ativismo intersexo e suas atuais demandas por direitos e cidadania, a autora explora a história da intersexualidade e o modo como essa experiência tem sido capturada por discursos médico-científicos e midiáticos. Se o livro trata de dor, sofrimento e privação, trata também de organização e de luta pela afirmação de subjetividades, identidades e experiências que, ainda para muitas pessoas, não deveriam ter sequer o direito de existir. Seguindo delicadamente os fios da interseccionalidade, Anacely faz emergir uma intersexualidade que não é apenas marca patológica, uma “desordem do desenvolvimento sexual”, mas que se constrói também como marca de primitividade, de subdesenvolvimento e de pobreza, inscrevendo nos corpos hierarquias e relações de poder que, além de gênero e sexualidade, mobilizam raça, classe, origem nacional e regional. Sua reflexão deixa assim bem evidente que, ao futuro das pessoas intersexo, muitos outros futuros se entrelaçam, muitas outras existências são tecidas, feitas e também desfeitas.
Sérgio Carrara.