“Entre outras qualidades de uma pesquisa e da pessoa que se dedica a ela, é necessário ter coragem. Para desconcertar consensos, ir adiante em impasses, preencher lacunas ou fazer emergir figuras cujas trajetórias tenham sido soterradas por diferentes violências e vilipêndios produzidos socialmente. Pensamentos, pessoas, visões de mundo e experiências que sempre estiveram lá e, por isso mesmo, sua presença incômoda, marcada pelas diferenças e desigualdades com o poder estabelecido, foi alvo de tentativas de soterramento e esquecimento, de silenciamento da fala e do parlatório. Sem sucesso, felizmente, seja pela força das palavras enunciadas, seja pela coragem de pesquisas como as de Anna Carolina Vicentini Zacharias, obstinada em apresentar ao público o pensamento e a força da existência de Stella do Patrocínio. E, por meio dela, um conjunto de artistas e pensadores semelhantes. Anna Zacharias se lançou em arquivos, documentação perdida, rastros familiares, instituições de asilamento, diálogo com outros campos de conhecimento, entrevistas, entre outras estratégias para recompor uma linha tracejada e rota, porém existente, dos passos de Stella e de sua voz. Se há um dever da memória social, que implica em sensibilidade e responsabilidade para ouvir pessoas que sobreviveram aos horrores e brutalidades sociais, não é possível terminar a leitura deste trabalho sem se comprometer com a luta antimanicomial e tampouco sem se encantar com a dignidade do pensamento de Stella do Patrocínio. Este encantamento nada tem de nostálgico ou de condescendente: ele é provocativo a evitar que outras vidas, no tempo presente, sejam alvo de ações brutais como as que Stella foi. Portanto, desafiador e desconcertante como o parlatório e o olhar de Stella que nos inquirem na nossa cômoda indiferença. Anna Carolina foi corajosa para exercer o dever da memória e nos convida a fazer o mesmo.”
Mário Augusto Medeiros da Silva