O racismo com o negro no Brasil interrompe violentamente mais duas vidas no Estado do Rio de Janeiro
Por Marcio André dos Santos* e Aderivaldo Ramos de Santana**
As cenas do brutal assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, trabalhador congolês de apenas 24 anos, motivaram uma onda de protestos, indignação e repúdio por todo o país e também no exterior. Moïse Kabagambe foi barbaramente espancado, amarrado e morto a pauladas por 3 homens responsáveis pela segurança do quiosque em que trabalhava no posto 8 da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O jovem congolês exigia o pagamento atrasado de serviços prestados ao dono do estabelecimento.
Poucos dias depois, Durval Teófilo Filho, outro homem negro, foi assassinado com 3 tiros quando chegava em casa do trabalho. Os disparos foram efetuados pelo sargento da Marinha, Aurélio Alves Ribeiro, homem branco, alegando que atirou por ter “confundido” Durval com um ladrão. O crime aconteceu em frente ao portão de acesso ao condomínio onde Durval morava com a esposa e a filha, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, mesmo condomínio onde reside Aurélio,
Cobertos de circunstâncias perversas, os dois crimes receberam atenção midiática e pronta investigação. Os assassinos de Moïse foram acusados por homicídio duplamente qualificado, quando há intenção de matar por motivo especifico: racismo, discriminação religiosa, sexual, xenofobia, etc. E no caso da morte de Durval, seu algoz foi, finalmente, acusado por homicídio doloso, quando há intenção de matar. Apesar de tomadas todas as providências que os fatos exigem, pela gravidade de sua natureza, é importante destacar que, em ambos os casos, a motivação foi a mesma: RACISMO!
Desde maio de 2020, principalmente após o assassinato de George Floyd, afro-americano de 46 anos, assistimos indignados e atônitos as impactantes cenas de racismo e discriminação racial, algumas de extrema brutalidade, escancarando o drama da população negra no mundo. A destruição do corpo negro não é apenas uma tradição, uma herança estadunidense, como afirmou o escritor Ta-Nehisi Coates.
O negro no Brasil
No Brasil, o atavismo escravista deixou marcas dolorosas na nossa formação social e os movimentos negros tem denunciado as tentativas de naturalização da violência racista contra pessoas negras. É um fenômeno histórico, estrutural, complexo e profundamente arraigado em nossa sociedade. Sociedade essa marcada de cabo a rabo pelos mais diferentes tipos de violência. Violência contra os povos indígenas, violência contra as mulheres, violência contra praticantes de religiões de matriz africana, violência contra pessoas LGBTQIA+, violência contra grupos socialmente vulneráveis e subalternizados. Importante considerar também a violência política que retroalimenta todas as violências descritas acima.
Não é exagero afirmar que pessoas negras pensam duas, três ou dez vezes mais no que pode acontecer quando saem de suas casas pelo simples fato de serem negras. A sensação constante que temos é que somos um alvo móvel.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra” já cantava a saudosa Elza Soares. É a “mais barata” porque a mentalidade racista diz que é mais barata, mais descartável, mais “matavél”. Mentalidade essa que legitima a destruição do corpo negro das formas mais desumanas possíveis: amarrando-o nu a um poste, como fizeram com o adolescente negro em Botafogo, em 2014; arrastando-o por mais de 350 metros, como fizeram com o corpo de Claudia Silva Ferreira, no mesmo ano; linchando-o, como fizeram com Moïse; assassinando friamente a tiros no portão de casa.
Moïse Kabamgambe e Durval Teófilo poderiam estar vivos hoje, levando suas vidas ao lado de seus familiares e amigos se seus algozes não tivessem previamente decidido que um corpo negro vale menos do que outros corpos. O fato de determinadas vidas serem menos valiosas do que outras têm raízes em nosso passado escravista e perpassa toda a nossa formação social. Nesse sentido, já passou da hora da sociedade brasileira encarar o problema de frente e deixar de agir como se o racismo e a destruição sistemática do corpo negro não fossem de sua responsabilidade. E para isso é fundamental que conheçamos nossa história.
Racismo estrutural
Quando falamos em racismo estrutural, não estamos nos referindo a uma mera situação de indisposição de uma pessoa contra outra. Não é uma rivalidade do tipo futebolístico em que a pessoa do time A não vai com a cara da pessoa do time B. É algo infinitamente mais complexo, denso, visceral. Como o nome aponta, o racismo estrutural organiza os modos pelos quais um país tratará seus cidadãos e suas cidadãs, do momento em que nascem até o momento em que morrem. Pessoas negras, indígenas e imigrantes de “países pobres” – como africanos, haitianos, bolivianos, venezuelanos etc. – sofrem diretamente os efeitos do racismo estrutural em seu dia a dia. Estamos falando de milhares de pessoas, entre brasileiros natos e estrangeiros. Quando olhamos para os dados estatísticos sobre condições de vida fica escancarado que essas populações amargam as piores expectativas de vida. São as mais expostas à violência urbana, ao desemprego, a informalidade e às chances de adoecimento ou falta de tratamento médico adequado.
Pessoas negras com renda mais alta também sofrem os efeitos do racismo nas posições que ocupam no trabalho e nos espaços sociais que frequentam. Durval Teófilo morava em um condomínio de classe média e ainda assim foi tratado pelo vizinho branco como um outsider, um invasor, um ladrão. O imaginário racista do vizinho branco de Durval não precisou de muito tempo para julgá-lo de imediato e ali mesmo, de dentro do carro, decretar a sentença de morte de mais um homem negro.
Esse pano de fundo sociológico mínimo dos assassinatos de Moïse Kabamgabe e Durval Teófilo permite entender como o sistema atua sobre o corpo negro no Brasil.
Estamos exaustos de viver em um país que nos trata de maneira abjeta. Porém, também tentamos nos contrapor a tudo isso travando lutas diárias contra o racismo nas mais variadas frentes, situações e dimensões. Os movimentos negros e grupos de defesa de direitos humanos não se calarão frente a execução sumária desses homens negros. Não podemos e não vamos nos calar. Basta de racismo!
*Cientista político e professor adjunto da UNILAB, campus dos Malês, Bahia. Autor do livro “Movimentos negros e lutas antirracistas no Brasil e Colômbia”
**Historiador e membro da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.
Movimentos negros e lutas antirracistas no Brasil e Colômbia
A obra analisa as complexas relações político-institucionais entre movimentos negros e o Estado nos dois países, em uma perspectiva comparativa. Será que políticas de ação afirmativa para as populações negras nesses dois países resistirão a ascensão de agendas conservadoras e, inclusive, antinegras? Movimentos negros e lutas antirracistas no Brasil e Colômbia possibilita um diálogo crítico com a conjuntura em torno desta e outras questões fundamentais para a qualidade da democracia, seja no Brasil ou na Colômbia.