Por Richard Santos [1]
Os assassinatos da gente negra nos supermercados brasileiros apresentam o retrato da Maioria Minorizada diante do espelho do colonizador. Não é de hoje que vemos a arquitetura da exclusão mediada pelo mercado e aplicada por capatazes modernos, chamados de segurança, dessas empresas que nos revelam o sintagma dos códigos sociais da nação brasileira e conformam “nossa” brasilidade.
Mercado aqui pode ser compreendido como o ser invisível controlador das relações sociais através do capital, ou mesmo, como é meu objetivo nesse texto, aquelas antigas lojas de secos e molhados que na conjuntura do capitalismo global passaram a ser controladas por gestão e modelos internacionais.
Essas organizações mercantis, biologicamente estruturadas sob o signo da branquitude, apresentam um corpus organizacional que variam do capital aberto (exemplo do Carrefour, responsável pelo caso do João Paulo) às redes de atacado regionais, caso do Atakarejo, em Salvador, dita “Roma Negra”, cujos funcionários responsáveis pela segurança do local são acusados de terem entregue tio e sobrinho para o justiçamento de traficantes locais, conforme consta na acusação apresentada na última semana do mês de abril.
O que isso se relaciona com a peça hollywoodiana de soft power que também nesta última semana do mês de abril auferiu bons e inéditos prêmios da indústria estadunidense?
É possível dizer que sob o manto da América para os americanos o imaginário colonizado das elites brasileiras é uma espécie de réplica dos interesses construídos pelo Estados Unidos da América e sua política do Big Stick, onde secularmente imputa aos seus cães adestrados (a elite colonizada) o modo de tratar os indesejados. Dessa forma, auferindo lucros financeiros, reconhecimento e subalternizada proximidade com a terra do sol capitalista e do branqueamento. “A terra dos homens livres”, conforme antiga propaganda estadunidense na época da guerra fria e ecoada ainda hoje por seus dirigentes.
Se no filme estadunidense têm-se em primeiro plano o roteiro da morte anunciada do ativista Fred Hampton, facilitada pelo vigarista Bill O’Neal, caracterizado de militante negro infiltrado pelo FBI para se aproximar de Hampton, espionar e sabotar o movimento dos Panteras Negras; na tragédia brasileira têm – se o mito da democracia racial e a ideia de uma identidade tropical, a brasilidade, para desmarcar e desorganizar a percepção da Maioria Minorizada como alvo principal das políticas de branqueamento e eliminação física nesse secular longa metragem a que estamos absortos.
Nunca é demais recordar figuras não messiânicas como Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Paulo Paim, Sueli Carneiro, Clóvis Moura, Leci Brandão, Milton Santos, entre outras e outros lutadores pela vida e cidadania integral que nos informam com suas ações e proposições que só a luta nos mantém vivos, só a ação pela vida em nossos espaços nos farão, e aos nossos, dignos de uma vida longeva. É preciso denunciar, mobilizar e escancarar a chaga do que Abdias caracterizou como genocídio negro brasileiro que segue em curso.
Enquanto seguirmos como essa maioria silenciada de que falou Lélia Gonzalez, estaremos dando vazão ao perverso retrato da brasilidade que se consagra como característica ou particularidade do que ou de quem é brasileiro; natureza do que ou daquilo que é brasileiro. A normalização da morte negra ainda é uma característica de nossa identidade, a história e os dados nos permitem essa afirmação. Que saiamos da minoridade, não nos permitamos silenciosos.
[1] Autor de Maioria Minorizada – Um dispositivo analítico de racialidade, Editora Telha, 2020. Co-coordenador da Coleção Pensamento Negro Contemporâneo. Coordenador do Grupo de Pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo – UFSB-CNPQ. Pós-doutor em Cultura e Sociedade – PósCult – UFBA. Professor da UFSB. Membro da UNEGRO Brasil.